“Capacitismo, a síndrome do coitadinho”

Aviso para Maria, 9 anos, autista. A palavra “castigo” foi usada por ser a forma que ela compreende. Foto da porta da sala da casa da criança

“Crianças com deficiência também crescem, e se não tiverem oportunidades de aprendizado não se tornarão funcionais, produtivas, ativas e, muito menos, felizes”

Quando comecei na Educação Especial e Inclusiva, há 28 anos, havia poucos livros disponíveis, em um cantinho de estante na Biblioteca Central da Ufes e já eram ultrapassados. Mas, não tinha outra forma de estudar, na verdade eu achava o máximo ter encontrado aquele “tesouro”. Quem tinha qualquer tipo de deficiência só saía de casa para ir à médicos, instituições e casa de poucos parentes. De 1995 para cá os avanços foram enormes, sem dúvida, embora tenhamos muito chão para andar.

Tantos anos sem informações e com uma gama de senso comum a respeito de pessoas com deficiências trouxeram danos que ainda persistem hoje em dia, prejudicando o desenvolvimento dessas crianças. O pior deles não tinha nome até pouco tempo, agora tem: capacitismo. O capacitismo tem sua própria definição, mas vou representá-lo em falas comumente usadas: “coitadinho, ele tem problema”, “deixa ele quebrar, ele é especial”,  “não coloque ele de castigo, ele não sabe o que faz”, “não precisa se preocupar com nada, ele só vai pra escola pra se socializar”, “deixa ele ganhar, senão ele chora”, “ele não precisa cumprir regras, ele é especial”, “ele nunca vai aprender isso ou aquilo, ele é especial”, “leva ao parquinho, ele está nervoso e quebrou tudo na sala”. E por aí vai. Crianças com deficiência também crescem, e se não tiverem oportunidades de aprendizado não se tornarão funcionais, produtivas, ativas e muito menos, felizes.

Lembro bem de uma ocasião em que eu era Coordenadora pedagógica de uma escola e estava ensaiando as turmas para a festa junina. Avisei para todos os alunos que quem não quisesse dançar iria, durante os ensaios, ficar no parquinho. Havia um garoto com síndrome de Down que escolheu não dançar. Ele se comunicava muito bem e disse, várias vezes, que não queria. Avisei claramente que quem não ensaiasse não iria dançar e ele concordou. Claro que, naqueles ensaios, o parquinho era mais atrativo, tudo bem, mas toda escolha tem uma consequência. No dia da festa vem o garoto, todo lindo e faceiro, com sua mãe e tia, me perguntando quem seria seu par. Falei que ele não ensaiou, portanto não iria dançar. Ele fez a famosa cara de cachorro que caiu da mudança e pediu “por favor”. A mãe me falou que ele sabia dançar, que iria conseguir. Expliquei que não era questão de saber, era que não seria justo com todos que passaram tanto tempo ensaiando, que alguém que escolheu brincar o tempo todo, simplesmente dançasse. As opções foram colocadas, as consequências de cada uma delas, também. Como ele tinha uma deficiência expliquei mais vezes, insisti. Ele havia feito sua escolha e tinha 10 anos, idade suficiente para entender. Me mantive firme, pois era simplesmente uma regra e ele, como parte daquela comunidade escolar, precisava seguir. Ele não dançou, fez cara de choro, mãe e tia devem ter me fuzilado em pensamento, mas, eu só estava fazendo o meu trabalho. Mas, e a frustração? E o sofrimento? Ora, fazem parte da vida, né? Crescer dói para qualquer um, com ou sem deficiência. Supor que um indivíduo com alguma deficiência, mesmo alguma com sintomas muito leves, não é capaz de aprender a conviver segundo as regras de uma escola ou qualquer outro lugar que crianças frequentam, é capacitismo! Na festa seguinte teve apresentação do folclore, vocês acham que ele foi para o parquinho na hora dos ensaios? Nunca mais!

Achar que uma criança pode bater na sua colega e não pode ter consequência alguma, pois “não vai entender”, é capacitismo!

Pensar que crianças com deficiências não fazem birras, não te testam, não manipulam, não erram e não conseguem aprender com os erros, é capacitismo!

Dizer que crianças com deficiências estão na escola somente para socializar, é capacitismo!

Não tentar todas as maneiras possíveis para que a criança aprenda achando que “não adianta”, é capacitismo!

Permitir que uma criança com deficiência quebre regras e ainda bater palmas, é capacitismo!

Tantas e tantas outras coisas eram e são capacitismo!

Sei que é difícil pedir para nossos vovôs e vovós aprenderem isso, afinal esse povo existe pra estragar os filhos dos filhos e está tudo bem, é assim mesmo, e quando vem um netinho com “um probleminha”, aí é que o puxam para debaixo das asas e acabam prejudicando ainda mais, porém, os mais novos tem grandes possibilidades de mudar essa mentalidade “coitadista” e já crescer dando aos seus colegas oportunidades de aprender a ser, antes de tudo, um cidadão com direitos e deveres. Por exemplo: um dia, acompanhando Maria (nome fictício) na escola, fui com sua turma para a aula de música e ao entrar me sentei em uns bancos que tinham lá. Uma criança me avisou que a professora proibiu todos de se sentarem ali, pois na aula anterior havia dado briga. Falei que eu era adulta, então essa regra não se aplicava a mim. A criança concordou comigo e completou:”você pode sentar e a Maria também, porque ela é autista”. Imediatamente falei: “Maria também não pode, porque essa regra é para as crianças e ela é criança, não é porque ela é autista que pode se sentar nos bancos”. Ele, mais uma vez, concordou e se saiu muito bem com uma conclusão: “Ah, mas na semana passada Maria não veio e não participou da briga, então ela deve poder se sentar nos bancos”. Pronto, Maria tinha agora uma ótima justificativa para poder fazer o que nenhum coleguinha podia. Não era privilégio por ser autista, era por não ter feito nada para ter essa consequência.  Essa mesma menina, Maria, um dia fez uma birra muito intensa na escola e, ao chegar em casa, seus pais tiveram uma conversa com ela, sempre falando frases curtas: “o que você fez foi errado e hoje você vai ficar sem celular”! Fizeram um cartaz e colocaram em um lugar visível para que ela sempre se lembrasse. Maria não pediu o celular durante a tarde. À noite, quando a mãe chegou do trabalho, tentou pegar. Ao encostar a mão no aparelho, a mãe só apontou para o cartaz. Imediatamente ela desistiu. Esses foram momentos de grande aprendizado para Maria. Achar que ela não consegue aprender regras básicas de convivência é capacitismo! Ela aprendeu e, sempre que quer começar uma birra, lembramos a ela que pode usar as palavras para se comunicar, pois não entendemos gritos e ela ainda pode ficar outra tarde sem celular. Lembrar quais consequências seus atos trazem é de suma importância na preparação para a vida em sociedade.

Tirar de qualquer indivíduo a chance de dar um passo para frente, por menor que seja, é capacitismo!

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